11/29/2004

"A Portuguesa", Retórica de um Hino

Segundo a "Enciclopédia Portuguesa e Brasileira", a melodia de "A Portuguesa" (da autoria de Alfredo Keil) é generosa, mas prejudicada, quando se canta, pelo facto de a sua tessitura exceder a tessitura média da voz - "o que, para vozes não cultivadas, torna a sua entoação sempre deficultosa". Ainda tem outro senão, de acordo com a Enciclopédia: a prosódia é defeituosa, porque a adaptação dos versos foi feita posteriormente (acrescentam, aliás, que esses versos de Lopes de Mendonça não valem a inspiração musical da canção). Por causa dos esforços para facilitar a união da letra e da música - a métrica tem problemas - , ouve-se cantar o hino de maneiras diferentes. E já não se canta a segunda parte. O que é uma pena , porque a primeira parte é a mais pobrezinha.
Nessa primeira parte, a que nós cantamos, nota-se, como emtodos os hinos, uma forte dimensão exclamativa e aplativa (vocifrante, mesmo). Mas essa maneira vagamente imprecatória de apostrofar e chamar - veja-se o cora - é combinada com uma parte sublimadora, senão corria o risco de se parecer com uma coisa de taberna. Assim, compensando o lado um pouco mais desabrido, tem as sublimações que lhe vêm do vocabulário a elevar-se, para alçapremar a alma. "Egrégios", por exemplo. E, evidentemente, uma expressão mais sublime, como "as brumas da memória".
A esta dimensão das vociferações sublimadas, acrescenta-se outra: a de uma horizontalidade vectorizada, por assim dizer, que começa por ser verticalidade. Simplificando: vê-se em "Levantai hoje de novo", que é a verticalidade, depois com o movimento para a frente do "marchar, marchar". Este movimento assegura a dimensão de fraternidade fálica ou pelo menos viril que de uma maneira geral os hinos nacionais sempre têm para poder funcionar em isotopia - ou linha de sentido - bélica. O mais curioso, aqui, é a noção de "Pátria": como faz parte dos fantasmas, aparece como uma voz - "Ó Pátria, sente-se a voz" - numa espécie de alucinação auditiva. É curioso, uma cena fantasmática suportada auditivamente.
A segunda parte, que já ninguém canta, é o fim feliz. Começa por manter o tom fálico: "o sol que desponta". Mas depois vem a alegria, com "ridente" e "jucundo" (jucundo é como jovial e prazenteiro). E o obstáculo ("o eco de uma afronta") transforma-se em trampolim ("o sinal de ressurgir"); nas análises de texto, é a transformação do oponente em adjuvante, para a conquista da plenitude. Torna-se muito bonito, porque se introduz a dimensão pacificante da mãe ("são como beijos de mãe") a desfraldar - ou seja, a mãe na sua dimensão de fralda; e a voz já não é fantasmática, é um brado, porque " POrtugal não pereceu!". No "Beija o solo teu jucundo" há uma óbvia componente religiosa; lembremo-nos do que faz o Papa assim que sai de um avião. Já " O oceano a rugir de amor", é um caso mais complexo: por um lado, é um cruzamento de "mãe" e de "mar", como muitas vezes acontece. Por outro, o facto de "mar" ter passado a "Oceano", que ainda por cima está "a rugir de amor", é um cruzamento com o lado fálico que vem do princípio: e tudo nos precipita para um glorioso fim. A mãe fálica que dá novos mundos ao mundo. A nossa Pátria. E como é a nossa Pátria não se pode escrever sobre o Hino, nem comentar a Bandeira.

Tereza Coelho in Independente 30 - 11 - 1990

"A Portuguesa"

Versão original
  • I
Heróis do mar, nobre povo,
Nação valente, imortal,
Levantai hoje de nono
O esplendor de Portugal!
Entre as brumas da memória,
Ó Pátria. Sente-se a voz
Dos teus egrégios avós,
Que há-de guar-te à vitória!
  • I
Desfralda a invicta bandeira,
à luz viva do teu céu!
Brade a Europa à terra inteira:
Portugal não pereceu
Beija o solo teu jucundo
O oceano, a rugir d' amor,
E o teu braço vencedor!
Às armas, às armas!
Sobre a terra sobre o mar,
Às armas, às armas!
Contra os canhões marchar, marchar!
  • III
Saudai o sol que desponta
Sobre um ridente porvir;
Seja o eco de uma afronta
O sinal de ressurgir.
Raios dessa aurora forte
São como beijos de mãe,
que nos guardam, nos sustêm
Contra as injúrias da sorte.
Às armas, às armas!
Sobre a terra, sobre o mar,
Às armas, às armas!
Pela pátria lutar
Contra os canhões marchar, marchar!
Henrique Lopes de Mendonça
Música por Alfredo Keil



Notícias do Bloqueio

in Revista Árvore em 1952
Aproveito a tua neutralidade,
o teu rosto oval, a tua beleza clara,
para enviar notícias do bloqueio
aos que no continente esperam anciosos.
Tu lhes dirás do coração o que sofremos
nos dias que embranquecem os cabelos...
tu lhes dirás a comoção e as palavras
que prendemos - contrabando - aos teus cabelos.
Tu lhes dirás o nosso ódio construído,
sustentando a defesa á nossa volta
- único alcochoado para a noite
florescida defome e de tristezas.
Tua neutralidade passará
por sobre a barreira alfandegária
e a tua mala levará fotografias,
um mapa, duas cartas, uma lágrima...
Dirás como trabalhamos em silêncio,
como comemos silêncio, bebemos
silêncio, nadamos e morremos
feridos de silêncio duro e violento.
Vai pois e noticia com um archote
aos que encontrares de fora das muralhas
o mundo em que nos vemos, poesia
massacrada e medos à ilharga.
Vai pois e conta nos jornais diários
ou escreve com àcido nas paredes
o que viste, o que sabes, o que eu disse
entre dois bombardeamentos já esperados.
Mas diz-lhes que se mantém indevassável
o segredo das torres que nos erguem,
e suspensa delas uma flor em lume
grita o seu nome incandescente e puro
Diz-lhes que se resiste na cidade
desfigurada por feridas de granadas
e enquanto a água e os víveres escvasseiam
aumenta a raiva
e a esperança reproduz-se.
Egito Gonçalves (1922 - 2001)


Nota: A guerra fria revisitada.